A ÚLTIMA ESTRELA
A ÚLTIMA ESTRELA
*
Um anjo, de negro,
Recolhia do céu
As últimas estrelas da noite
Para que o Sol
Nascesse claro e glorioso
*
Uma mulher, de branco,
Recolhia, de uma qualquer janela,
O seu direito de prolongar a noite
*
O Anjo olhou a Mulher,
Pequena estrela baça
Teimando em ser estrela
Para além da noite
E se anjos são anjos,
São homens com asas
Sofrendo das mesmas vãs contradições
*
O homem com asas
Não fez por maldade,
Fez por tradição:
Não se rouba ao sol
A glória do brilho
Nem se guarda a noite
Por trás da janela,
Que até ente os anjos
Impera o conceito
Do que é preconceito...
*
Tocou-lhe ao de leve,
Tão de levezinho
Que mal lhe tocou
E a mulher caiu,
Caiu, mas subiu
No segundo certo,
No momento exacto
De alcançar no alto
A Última Estrela.
*
Mª João Brito de Sousa
1994
***
À I.C., In Memoriam
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(RE)NOVOS LUSITANOS
(RE)NOVOS LUSITANOS
*
Tentei erguer um império
Nos abraços de um mortal
E ousei escrever epopeias
Na barra de um avental
*
Assim nasceu um mistério
Ainda por desvendar:
Estando em terra, em cativeiro,
Julgava-me em pleno mar...
*
Então desfraldei as velas
Do meu estranho imaginário
E transformei uma cela
Num galeão de corsário...
*
Hoje heróica lusitana
Dos tempos que vão correndo,
Navego na minha cama
Sobre os sonhos vou tendo!
*
Mª João Brito de Sousa
2002
***
In Arquétipos de Uma Mulher Interrompida
Inédito
***
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LEILÃO
LEILÃO
*
Pus a alma à venda
Por uma noite de sono
Um remendo
Do tamanho exacto da camada de ozono
E a felicidade
Do pequeno rebanho
Que tenho de guardar
*
Ninguém ma quis comprar
E eu
Teimosa
Lancei-a a leilão
Num bairro de sucateiros
Onde alguém ma comprou
Por três dinheiros
*
Tive de a ceder
Que palavra é palavra
E eu sempre fui leal
*
Só não entendo
Por que é que ainda sonho com Morfeu
Tento engendrar o tal remendo astral
E sofro a cada dor de quem de mim nasceu.
*
Mª João Brito de Sousa
1991
In Arquétipos de Uma Mulher Interrompida
Inédito
***
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POEMA DISSILÁBICO
POEMA DISSILÁBICO
*
Nasceu
Chorou
Sorriu
Cresceu
E viu
Que fora
Mais um
Apenas
Mais um
E tanto
Contudo!
*
Importa
Agora
O sonho
Que traz
Consigo
E tudo
Aquilo
Que dele
Emane
*
Viver
Também
É isto.
*
Mª João Brito de Sousa
06.10.2022 - 13.00h
***
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VEM!
VEM!
*
Vem,
porque a jangada
em que hoje moro,
é tua
e dentro dela a gente alcança a lua
sempre que a lua vem beijar o mar.
*
Vem,
traz os teus remos,
traz as tuas asas,
vamos encher todas as marés-vazas
da poesia que a gente inventar
*
Vem,
semear espantos,
povoar as águas
até (des)afogar as velhas mágoas
na embriaguez do sonho por sonhar
*
Vem,
que a geometria
deste nosso abraço
vai desabar nos braços do sargaço
no qual, felizes, vamos naufragar...
*
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 14.50h
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ALÍNEA M
Alínea M
*
Confusa,
julgo ter acordado
ao lado de uma Natália
ainda incompletamente diluída
no esquecimento de um qualquer sonho
que me não recordo de ter sonhado
*
Só essa estranha sensação,
mais do que memória
mas ainda distante do palpável
teima em reocupar um lugar
num tempo e num espaço
a que há muito deixou de pertencer.
*
Agora debruço-me da janela,
creio ver decompor-se o mito de Medeia
na terra adubada da floreira do vizinho
e não, não posso jurar que esteja acordada,
Tudo se me enevoa diante dos olhos.
*
Piso finalmente o chão
e ergo-me do sonho
depois de despidas as ilusões.
*
Nenhum ouro,
nem sombra de alquimia;
Medo não nasceria dessa matinal estranheza.
*
Maria João Brito de Sousa - Outubro, 2020
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TEMPO
TEMPO
*
Tu dizes Eu
como quem bebe um copo de astros
e teces os corpos
nas arestas das horas
com
o pasmo e a leveza
das mãos que não tens
*
Tu dizes Vida
como se ela estivesse ainda por nascer
e
não páras de moldá-la
e
de cobri-la
dos indispensáveis acessórios
das teias e fungos e limos e dourados bolores
*
Tu passas
como se de todo não passasses
porque
não tens memória
que,
a essa,
somos nós
nós
bichos e sombras e plantas
e
serenas pedras de todos as escarpas
que ta vamos tecendo
para que
nela
te possamos (re)conhecer
*
Maria João Brito de Sousa – 15.01.2019 – 12.43h
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EU DIGO, TU DIZES, ELE DIZ...
EU DIGO, TU DIZES, ELE DIZ...
*
Diz um senhor dos jornais
(aos ais...)
que alguns intelectuais
nunca serviram pra mais
por não serem marginais.
*
Diz um senhor das revistas
(sem pistas...)
que os desgraçados artistas
foram sempre uns arrivistas
quase todos elitistas.
*
Digo eu
que sou poeta
que o senhor só diz é treta...
Forreta!
*
Maria João Brito de Sousa – 30.10.2018- 21.30h
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SEM MEIAS-TINTAS
Eram simpáticos
medianamente simpáticos
nos seus cumprimentos
e nos seus sorrisos
mais ou menos artificiais
mais ou menos impostos
mais ou menos convenientes
Ele
a partir desse dia
aborrecera
flores, lacinhos, veludos e doirados…
aborrecera os meio-doces
rebuçados de hortelã-pimenta
as meias-criações
as meias-paixões
as meias-convicções
e
todas as meias-tintas
que perturbassem
o canto genuíno do melro
o uivo do lobo absoluto
o rosnido do lince interior
Sequóias!
Ainda se lhe dessem sequóias
de raiz presa à terra
como as vozes dos deuses menores…
Ainda se lhe dessem
esses arranha-céus de fibra e floema
que aspiram aos longes dos astros
mais ou menos longínquos
e lhe renovassem a promessa
de ascender com eles…
Mas tudo o que se lhe cumpria
eram aqueles meios sorrisos
aqueles rictos e rituais
mais ou menos postiços
que afirmavam
agradar ao Deus sem tamanho
a quem atribuíam
todas
todas as autoridades
excepto a de aborrecer
as meias-genuinidades.
*
Maria João Brito de Sousa – 07.04.2010 – 19.00h
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CADA POEMA
CADA POEMA
*
Cada poema
Tem asas de papel nascendo incertas
Como velas rumando à descoberta
Da Ilha de S. Nunca da partida
*
Quando ressurge
Muito embora vencido é temerário
Como a luta tenaz de cada operário
Que aspira à igualdade prometida
*
Onde um termina
Começa um outro verso inevitável
Cada um deles gerando um infindável
Rosário de memórias de uma vida
*
Cada poema
Tem alma de mulher, corpo de chama
De onde irrompe uma voz que então proclama
O culminar da luz na pele rendida
*
Cada poema
É raiva, urgência, amor,
Silêncio, grito e voz da mesma dor
Numa explosão domada ou incontida
*
Cada poema
É mais do que uma inércia ou um transporte,
É eixo, é a matriz deste suporte
Das minhas transgressões de fera ferida
*
Cada poema
Tem sempre a dimensão de um corpo estranho,
Imensurável, pois não tem tamanho,
Porta-voz de uma força indesmentida
*
Quando ressurge
Muito embora vencido é temerário
Como a luta tenaz de cada operário
Que aspira à igualdade prometida
*
Onde um termina
Começa um novo verso inevitável,
Cada um deles gerando um infindável
Rosário de memórias de uma vida.
*
Maria João Brito de Sousa – 16.09.2010 – 14.38h
Parto da Viola, Amadeo de Souza-Cardoso