VEM!
VEM!
*
Vem,
porque a jangada
em que hoje moro,
é tua
e dentro dela a gente alcança a lua
sempre que a lua vem beijar o mar.
*
Vem,
traz os teus remos,
traz as tuas asas,
vamos encher todas as marés-vazas
da poesia que a gente inventar
*
Vem,
semear espantos,
povoar as águas
até (des)afogar as velhas mágoas
na embriaguez do sonho por sonhar
*
Vem,
que a geometria
deste nosso abraço
vai desabar nos braços do sargaço
no qual, felizes, vamos naufragar...
*
Maria João Brito de Sousa - 04.03.2021 - 14.50h
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ALÍNEA M
Alínea M
*
Confusa,
julgo ter acordado
ao lado de uma Natália
ainda incompletamente diluída
no esquecimento de um qualquer sonho
que me não recordo de ter sonhado
*
Só essa estranha sensação,
mais do que memória
mas ainda distante do palpável
teima em reocupar um lugar
num tempo e num espaço
a que há muito deixou de pertencer.
*
Agora debruço-me da janela,
creio ver decompor-se o mito de Medeia
na terra adubada da floreira do vizinho
e não, não posso jurar que esteja acordada,
Tudo se me enevoa diante dos olhos.
*
Piso finalmente o chão
e ergo-me do sonho
depois de despidas as ilusões.
*
Nenhum ouro,
nem sombra de alquimia;
Medo não nasceria dessa matinal estranheza.
*
Maria João Brito de Sousa - Outubro, 2020
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TEMPO
TEMPO
*
Tu dizes Eu
como quem bebe um copo de astros
e teces os corpos
nas arestas das horas
com
o pasmo e a leveza
das mãos que não tens
*
Tu dizes Vida
como se ela estivesse ainda por nascer
e
não páras de moldá-la
e
de cobri-la
dos indispensáveis acessórios
das teias e fungos e limos e dourados bolores
*
Tu passas
como se de todo não passasses
porque
não tens memória
que,
a essa,
somos nós
nós
bichos e sombras e plantas
e
serenas pedras de todos as escarpas
que ta vamos tecendo
para que
nela
te possamos (re)conhecer
*
Maria João Brito de Sousa – 15.01.2019 – 12.43h
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EU DIGO, TU DIZES, ELE DIZ...
EU DIGO, TU DIZES, ELE DIZ...
*
Diz um senhor dos jornais
(aos ais...)
que alguns intelectuais
nunca serviram pra mais
por não serem marginais.
*
Diz um senhor das revistas
(sem pistas...)
que os desgraçados artistas
foram sempre uns arrivistas
quase todos elitistas.
*
Digo eu
que sou poeta
que o senhor só diz é treta...
Forreta!
*
Maria João Brito de Sousa – 30.10.2018- 21.30h
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SEM MEIAS-TINTAS
Eram simpáticos
medianamente simpáticos
nos seus cumprimentos
e nos seus sorrisos
mais ou menos artificiais
mais ou menos impostos
mais ou menos convenientes
Ele
a partir desse dia
aborrecera
flores, lacinhos, veludos e doirados…
aborrecera os meio-doces
rebuçados de hortelã-pimenta
as meias-criações
as meias-paixões
as meias-convicções
e
todas as meias-tintas
que perturbassem
o canto genuíno do melro
o uivo do lobo absoluto
o rosnido do lince interior
Sequóias!
Ainda se lhe dessem sequóias
de raiz presa à terra
como as vozes dos deuses menores…
Ainda se lhe dessem
esses arranha-céus de fibra e floema
que aspiram aos longes dos astros
mais ou menos longínquos
e lhe renovassem a promessa
de ascender com eles…
Mas tudo o que se lhe cumpria
eram aqueles meios sorrisos
aqueles rictos e rituais
mais ou menos postiços
que afirmavam
agradar ao Deus sem tamanho
a quem atribuíam
todas
todas as autoridades
excepto a de aborrecer
as meias-genuinidades.
*
Maria João Brito de Sousa – 07.04.2010 – 19.00h
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CADA POEMA
CADA POEMA
*
Cada poema
Tem asas de papel nascendo incertas
Como velas rumando à descoberta
Da Ilha de S. Nunca da partida
*
Quando ressurge
Muito embora vencido é temerário
Como a luta tenaz de cada operário
Que aspira à igualdade prometida
*
Onde um termina
Começa um outro verso inevitável
Cada um deles gerando um infindável
Rosário de memórias de uma vida
*
Cada poema
Tem alma de mulher, corpo de chama
De onde irrompe uma voz que então proclama
O culminar da luz na pele rendida
*
Cada poema
É raiva, urgência, amor,
Silêncio, grito e voz da mesma dor
Numa explosão domada ou incontida
*
Cada poema
É mais do que uma inércia ou um transporte,
É eixo, é a matriz deste suporte
Das minhas transgressões de fera ferida
*
Cada poema
Tem sempre a dimensão de um corpo estranho,
Imensurável, pois não tem tamanho,
Porta-voz de uma força indesmentida
*
Quando ressurge
Muito embora vencido é temerário
Como a luta tenaz de cada operário
Que aspira à igualdade prometida
*
Onde um termina
Começa um novo verso inevitável,
Cada um deles gerando um infindável
Rosário de memórias de uma vida.
*
Maria João Brito de Sousa – 16.09.2010 – 14.38h
Parto da Viola, Amadeo de Souza-Cardoso
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PEQUENOS LUXOS
PEQUENOS LUXOS
*
Nenhum medo,
conquanto
todas as formas de o negar
viessem bater-lhe à porta naquele dia
pintado de fresco...
*
Era
o pormenor rústico
da inesperada lata de grão-de-bico
que
(por mero acaso)
encontrara na despensa em desalinho
(e)
ainda
o requintado rancho-fingido
que
efectivamente fingira cozinhar
sobre a única boca do fogão desmantelado
(e)
era
a gata,
bêbeda de sol,
espreguiçada nas lonjuras da marquise,
longe do desconsolado consolo
dos livros cobertos de pó
(e )
as paredes desbotadas
que sempre a haviam vestido
como uma segunda pele
(...)
O galope ritmado,
imparável,
do decassílabo heróico,
esse,
um dia voltará
*
Não sabe quando,
mas sabe
que um dia retornará
grávido de som
pujante, indomável
a galgar as planícies de oiro do poema
*
Não baterá à porta
nem se fará anunciar
porque
jamais um galope selvagem
poderia fazer-se anunciar
(pequenos luxos de poeta. Enfim...)
*
Maria João Brito de Sousa - 22.11.2016 - 18.56h
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O TRAÇO E A CÔR
O TRAÇO E A COR
*
Rabisco um traço breve
a verde-mar
no manto que me cobre
a cada inverno
como prece esboçada
ao deus solar
que ecoa no meu peito
ao som das veias
e se despede à pressa,
ou devagar...
*
Como se tudo o que ergo
resistisse
à dor de um Tejo morto
e sem sereias
assim deixo morrer
não prolongando
pr`além do caos sereno dos sentidos
o verde-mar de um gesto
a derramar-se
no declinado inverno dos meus braços
*
Maria João Brito de Sousa - 22.09. 2016 - 14.58h
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PRECISO DE NAVEGAR...
Ai que eu, agora,
Já nem sei meter travões
Tenho as rimas por paixões
Ouso versos compulsivos
Ai que eu, agora,
Nem sei se escrevo ou converso
Cabe-me a vida num verso
Não vendo pra tal motivos
E se isto fica
Para sempre a dar-me o mote
Não há motor nem há bote
Que me reconduza ao cais
Pois se isto fica
Será no mar deste mar
Que hei-de um dia naufragar,
Quando for tarde demais
Mas pouco importa
Naufragar se naveguei
Porque nele me aventurei
Se mais do que à vida o quis
Ah, pouco importa
Que o que importa é ter-se um rumo
Navegar provando o sumo
Que em nós há desde a raiz
Maria João Brito de Sousa - 29.08.2016 - 12.05h
(Imagem retirada da Web, via Google)
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É DAQUI QUE TE ESCREVO...
É DAQUI QUE TE ESCREVO
*
É daqui que te escrevo,
desta vontade que me veste de Abril
de poemas e de trapos, também
*
Daqui,
de onde me reconheço em ti espelhada
embora o perfil simples do meu cravo
sem nome nem espinhos
e
tão menos glorioso
pareça vergar-se a cada verso que canta
*
Mas é daqui,
deste lado aguerrido de mim
onde vestida de um Abril em farrapos
não dispo Abril
apesar do despontar
duma resistência que te não sei explicar
mas presumo que
ninguém imaginaria florescendo ainda
*
Daqui,
de onde também eu
aprendi a amar a solidão
e
a recriar o mundo
na sombra da ausência
dos anos – tantos… - do verde caule
de um mesmo sonho de pétalas ao rubro
*
Daqui
e
porque o poema me apeteceu
insurrecto e vermelho
este escrever-te
sem rima nem medo
com as armas florindo num canto maior
*
Maria João Brito de Sousa – 19.06.2011 – 16.31h
*
A um camarada que ainda estava entre nós
no ano de 2011