ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU...
ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU
*
Não era a minha face
que via nesse espelho...
era
a de uma outra Alice
no país dos pesadelos
que se transmutava
ao sabor dos cogumelos
e sabia dar corda
ao relógio do coelho...
Não era a minha face, com certeza!
*
Era,
talvez,
a da Menina-do-Capuz-Vermelho
apaixonada por um lobo velho,
com ele fugindo ao caçador malvado
- a avozinha
comprava os bolos no supermercado
e
todos os dias
dançava rock and roll na penumbra do quarto
*
Era
a
da Bela-Adormecida
que nunca mais conseguia adormecer
e se deitava a escrever
cartas de jogo à Bruxa-Arrependida
*
Era
a
da Branca-de-Neve dos sete-mil-anões
devorando maçãs-desencantadas,
tentando acreditar
que nem tudo são desilusões
*
Ou
a
da Princesa-dos-Sapatinhos-de-Cristal
a vir da discoteca às cinco e tal
*
Talvez
a
do
Pinóquio,
sorrindo no ventre da baleia
ou
- quem o sabe? - da Pequena-Sereia,
mas
nunca a minha face:
Não era a minha face verdadeira!
*
Maria João Brito de Sousa - 1992/3
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HERANÇA
Avô,
Porque me deixaste
Tanto tempo antes de partir de verdade?
*
Nenhum de nós tinha na mão a tua sorte
E se algum dia te desejei a morte
Foi para te libertar duma vida estagnada,
Para que procurasses a Sereia Encantada,
O Anjo Azul que te convidou para jantar
E a Ilha Deserta que, enquanto vivo, não pudeste encontrar
*
Dos piratas malaios com quem brincavas
Em menino
Deixaste-me a cor da pele,
O negro dos cabelos
E o vago olhar felino
*
Sempre que embarco na tua Jangada de Luar,
Oiço as ondas que me pedem contas
Das tuas rimas vivas como o mar,
Desses teus versos líquidos, salgados
E
Só sei responder-lhes
Que te vi partir de olhos fechados
Que,
De ti,
Só sobraram
Os meus pobres poemas naufragados
Numa praia de areia calcinada
Onde me encontro com os mortos que voltaram
Pr`a perguntar-me da tua morada
*
Maria João Brito de Sousa - 1992
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ARBITRARIEDADE
ARBITRARIEDADE
*
Era uma mulher traçada a fio de prumo,
vinda dos tempos primevos do homem-vertical
*
Dia a dia,
percorria o rumo
que fazia do dia vindouro
um dia insuportavelmente sempre igual
*
Era de noite que brincava aos fantasmas,
diluída nos incontáveis ectoplasmas
das almas que foram e das que estão por vir
por isso,
acordava anoitecida
sem nunca estar segura
de ter acordado do lado de cá da vida.
Ora sonhava sonhos,
acordada,
ora cantava, estando adormecida;
o que doía
era viver multiplicada
onde todos a pediam dividida.
*
Maria João Brito de Sousa - 1993
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A CHUVA E O GATO NEGRO - 1958
É meia noite
Que ninguém se afoite a ir à janela!
*
A chuva cai, cai
E ai dela...
*
A chuva cai, cai
E vai perder-se no telhado
Onde morava o gato negro e esfomeado...
*
A chuva cai
Em pingos amargos e de dor
E tudo molha, e tudo estraga ao seu redor...
*
A chuva cai
E o velho gato negro esfomeado
Cai morto no telhado
*
Mas eis que o dia chega
E tu, ó noite, vais
E o velho gato negro vai pr`ó céu dos animais
*
Agora a chuva já não cai...
E o velho gato negro?
*
Já não se ouve o seu miar
Porque o velho e negro gato
Já tem onde morar.
*
Maria João Brito de Sousa - 1959 (sete anos)
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NÃO ACREDITO!
NÃO ACREDITO
*
Não acredito,
mas sei,
que há almas transparentes como o ar,
que há sereias e tritões
no mais profundo do mar
e que as fadas,
às vezes,
me vêm visitar
*
Não acredito,
mas sei,
que a morte é uma fronteira
e
logo a seguir a ela
mora a vida derradeira...
*
Não acredito,
mas sei,
que há bruxas, gnomos, duendes,
que vêm repreender-me
por viver tão alheada
dessa realidade alada, virtual, imaginada,
mas que está sempre presente..
*
Maria João Brito de Sousa - 1992
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POEMA A UMA RESISTÊNCIA PESSOAL
… e, às vezes,
tantas vezes de aço vivo,
esta dureza vítrea em que me embrulho,
este trajar de fraga
de alto a baixo,
este mergulho em mim
negando laços
e este dizer que não quase a rugir
*
Um dia
- um qualquer, eu sei lá quando… -,
o bicho em mim acordará estremunhado,
esquecido da espada e da armadura,
e refar-se-á nos sorrisos e abraços
que hoje não toleraria
*
Porque
só assim uma vida se cumpre,
o sol brilhará quando for tempo disso
e o corpo aprenderá a tolerar tanta invernia
*
Até lá, porém,
a luta continua
e,
de alguma estranha forma,
os órgãos,
um a um,
persistem
nesta estranha/inaudível surdina
à qual
nem um pretenso mago cairia
na absurda tentativa/tentação de adivinhar
o tamanho,
a textura
a dimensão
da densa/dura crosta/cicatriz
que as grandes,
grandes feridas pressupõem
*
Maria João Brito de Sousa – 27.12.2013 – 18.15h