MEMÓRIAS
Nessa noite
uma lua prenha,
rodando tão devagar
que qualquer olhar lhe atribuiria
a imobilidade do grafismo impresso,
deixou que uma nuvem cinzenta a tapasse
*
Depois,
sobre o louceiro da sala,
no aquário dos sonhos antigos,
um novo e inesperado peixe incolor
foi-lhe devolvendo a memória dos “crayons”
até que a insubmissão de uma mão imaginária
os quisesse e soubesse ressuscitar na vontade dos dedos
*
Fazia tanto frio
na floresta das cores
onde as horas, como agulhas,
lhe apontavam as conchas vazias
de mil gestos sem esperança de fruto...
*
Bastou
porém
que esse peixe
se agitasse levemente,
que uma palavra
espelhasse a cor da nuvem,
que as invisíveis raízes
suportassem o inevitável tronco,
que o impensável cilindro
se alongasse em ramos impossíveis,
que as velhíssimas memórias
se metamorfoseassem em folhas improváveis
para que
a substância do fruto
se viesse a tornar tão real
quanto aquela absoluta urgência
de o ouvir cantar
por dentro de outra novíssima criação.
*
Maria João Brito de Sousa – 02.02.2013 – 18.09h
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SEM TÍTULO NENHUM
Esculpo-me,
em silêncio,
na memória das horas
por onde caminho incólume
até à indecisão da última esquina
*
Tempero
a espada da lucidez
e devolvo-me ao poema
no fio dos meus indecifrados sonhos
*
Guardo-te,
desassossego,
para o reboar dos sinos,
para o galope dos corcéis,
e para as desilusões do não vivido
*
Virei por ti
no dia em que for tarde demais para escrever!
*
Maria João Brito de Sousa – 25.11.2012 – 21.27h
IMAGEM - Getação Floral - Maria João Brito de Sousa, 1999
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ESPERO-VOS...
ESPERO-VOS
*
Espero-vos
na imprevisibilidade
do tempo por vir,
à esquina do acaso que encontrar,
porque nada em mim é menos imenso
do que este espanto de vos saber alheios
*
Serena,
percorri os intervalos
entre cada compasso dos minutos
enquanto os anos se dignavam
desenrolar um imenso novelo de memórias
ao longo do qual,
coloridos e suspensos como jardins,
os dias floresciam
no silêncio vivo dos cinco sentidos
*
Ano após ano,
Fui colhendo os frutos da alegria
exactamente de onde a desdenhais
e dissolvi-me
no mais profundo dos sonos
sonhando que até o medo me temeria a mim
*
Sou,
límpida e solidamente,
aquilo que fui tecendo,
sonho a sonho,
numa imensidão de esperas…
como a vossa,
como as dos outros,
como as dos que acreditam
na construção de um rumo,
na despojada escolha de um devir qualquer
*
Esperar-vos-ei
na imprevisibilidade da cada esquina,
na indefinição do tempo que restar,
no limiar da vossa insultuosa indiferença,
no reacender de cada um dos vossos medos,
no segredo (in)confesso das vossas insónias
ou na (des)construção de um palco controverso
onde ninguém saiba de cor o seu papel
e onde jamais se oiça a voz sumida do “ponto”
*
Fá-lo-ei – ou talvez não… -
ainda que nada em mim seja menos visível
do que este espanto de vos saber alheios
*
Maria João Brito de Sousa – 01.11.2012 -21.08h
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APESAR DE TUDO...
APESAR DE TUDO
*
… mas chegaste tarde, apesar de tudo…
*
- Ele era um mundo inteiro de sorrisos e um imenso atropelo de boas vontades; não se avançava quase nada, não se fluía e este amanhã não era por ali…
*
- Tivesses dito que não. Ou empurrado alguém…
*
- Nunca saberia a quem empurrar… nem porquê. A boa vontade estava toda lá, embora insuspeita, difusa, descontextualizada e incolor.
*
- Como deste, então, por ela?
*
- Sentia-se, apenas. Era isso.
*
- Deixasses de a sentir! Terias chegado à hora combinada, terias sido mais conveniente e não me terias feito esperar...
*
- Ah, não poderia! Nenhum deles teria percebido que esperavas por mim.
*
Maria João Brito de Sousa – 11.05.2012 – 00.10h
NOTA – Não é um poema nem uma prosa poética, como muito bem terão reparado. Apenas uma “liberdade” em discurso directo. Uma liberdade no uso do seu pleno direito de não dizer coisa alguma que sentido faça…
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QUE PENA! - Um poema anti-poético e egoísta, para quando fizer falta rosnar
QUE PENA!
*
Que pena!
Tenho tanta pena de ter pena
dos olhos de luar que não tiveste,
da refeição frugal que não fizemos
no tal dia em que nos não encontrámos
*
Dessas mãos de sal que te não vi,
sublimando a saudade em gestação,
subiria – talvez…- o aceno prometido
ou nem sequer esboçado,
à força de tardio
*
Nos teus lábios que nunca experimentei
- porque não eram lábios
os riscos trémulos e desbotados
que jamais desenhámos
sobre a suspeição do beijo…-
um sorriso clonado
de todos os esgares que lhe foram anteriores
*
Que pena das horas que não passámos juntos
nessas manhãs,
essas
que nos encerram
na urgência banal e rotineira
- tão desmesuradamente banal e rotineira! -
do desejo insuspeito
que adivinho
no refrão de cada cantilena
e das tardes,
- quem sabe? -
atarefadas, urbanas, burguesas,
passeando entre o plano do fogão de quatro bicos
e a perpendicular do mar
- desse mar que só pode ser olhado por um de cada vez -
aborrecendo o momento seguinte,
barulhentas, conflituosas e – porque não? -
tão exactamente iguais às tardes que são as dos outros
*
Mas pena,
pena a sério,
pena crua e inenarrável,
daquela que magoa,
rasga por dentro e deixa cicatriz,
Pena teria eu tido de não ter podido ser quem sou!
*
Maria João Brito de Sousa – 28.05.2011 -14.47h