METÁFORA DAS LÁGRIMAS QUE NUNCA CHORAREI
LÁGRIMAS QUE NUNCA CHORAREI
*
Vejo-as
Nitidamente recortadas
No aço frio da silhueta matinal
*
Trazem
A pureza anímica das aves
Ao momento em que caem
e
pousam
Suavemente
Na tensão superficial
Das águas do meu imaginário
*
Não sei quantas são
Mas são
E basta-me a certeza de as ver
Não sei quantas,
Não sei porquê,
Nem sei exactamente quando,
Na mais lenta queda
Que os olhos me puderem recriar
*
Depois deixo de as ver
E o lago,
Desinventado,
Funde-se nas lágrimas que nunca chorarei
*
Maria João Brito de Sousa – 01.02.2011 – 18.45h
IMAGEM - Tela de Vincent Van Gogh - retirado da internet
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(SOBRE)VIVENTES
Nunca as conheceram,
Às flores de água estagnada
Nas pedrinhas
De um passeio imprevisto
Ainda à vossa espera?
No tempo em que os poetas
Eram feitos de papel
E os anjos se vestiam de farrapos
Mais ou menos coloridos,
Havia poças de água
Na fúria de uma sobrevivência
Tão menos visível quanto fascinante
Cresci a olhá-las
Para além da sua visibilidade,
Aprendi a sondá-las
E a reconhecer-lhes uma vontade
Que sempre ultrapassará
A minha,
A vossa,
A do próprio amor…
Nesse tempo
Do papel,
Dos farrapos,
Dos poemas curtinhos
E das tranças com laços,
Fundiam-se perfeitamente
Elas,
As flores de águas paradas
E eles,
Os meus olhos libertos como dantes
Maria João Brito de Sousa – 07.12.2010 -19.17h
Imagem retirada da internet
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SEJA EM QUE UNIVERSO FOR!
Aqui estou,
completamente desdobrada
entre o meu eu do primeiro instante
e o meu eu do último segundo,
no momento exacto
em que acabo de riscar
o que foi escrito
e começo a desenhar
a primeira letra do que está por escrever
Isso sou,
não mais e nunca menos,
exceptuando o pequeno intervalo
entre ser e não ser
em que fui tão além
sem que pudesse escrevê-lo
porque escrever não fez,
nem poderia ter feito, o menor sentido
Irei,
enquanto se me não cumpre esta distância
entre antes e depois
e nada mais peço
senão ser
gato-com-ou-sem-botas,
bicho-alado-sem-asas
ou fruto perfeitamente cristalizado
no mesmíssimo ponto
em que qualquer árvore É
antes de lhe apodrecer a raiz
e depois de a Vontade a ter tocado,
seja em que universo for!
Maria João Brito de Sousa – 01.12.2010 – 00.19h
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A CONQUISTA DA FLOR PELA SEMENTE
Lá longe
Ecoa, indómito,
O meu grito,
Fonética estelar
Que eu dignifico
Num jogo universal que não domino
Eu desafio,
Mais do que o razoável
E seguro
Nas letras a que já perdi a conta
Das mil canções que crio e nem procuro
Tudo isto eu devo
E nada mais me move
Ou me norteia
Senão a mesma força que promove
A devoção lunar de uma alcateia
E, sobretudo,
Sou,
Como os demais,
Palco e passagem
Dos mil ilusionismos geniais
De uma vontade só, que é divergente,
Qual átomo lançado na voragem
Da conquista da flor pela semente!
Maria João Brito de Sousa
Ao lobo que mora em cada um de nós
Maria João Brito de Sousa – 14.11.2010 – 18.19h
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OS VERSOS IMPROVÁVEIS
Hoje, alquebrada,
Parti perdidamente à descoberta
De um sonho por sonhar
Noutro universo;
Eram duas ou três aves sem rumo
Na margem da cidade por esculpir,
Duas ou três colinas seminuas,
Duas ou três vontades mal esboçadas
E um canto muito ao longe
A pedir vozes
Eram duas ou três cordas de estopa
Nos braços da figueira urgente e tosca,
Duas ou três mentiras renegadas,
Duas ou três mil nuvens por chover
E a jangada a afundar-se
Sem memórias
Derrotada
Aonde perfeitamente me inventei
Tentei reformular-me
No dealbar dos versos improváveis
Maria João Brito de Sousa
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SOLIDÃO
Fecho-me em solidão.
Sei lá porquê!
Há dias em que o céu me sabe a pouco
E as ondas salgadas
Não fazem outro sentido
Que não esse mesmo sentido
De serem ondas
E serem salgadas.
A velha e doce solidão
Tem a vantagem
De estar sempre à disposição
Das minhas indigestões de quotidiano
E abre
Cortesmente
A porta
Às pequenas alegrias
Que virão mais tarde …
Além do mais,
Quem disse que a solidão
- essa que dizem, magoa… -
Poderia existir
Depois dos poemas que ainda não morreram?
Maria João Brito de Sousa – 19.07.2010 – 19.47h
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MAIS LONGE
Ele há lá canto
E voz e fogo ou estrada
Que alcancem o que alcança
Um simples sonho!
É A meta
Exactamente Essa
Essa Exactamente
A meta É
Nunca tinhas reparado?
Maria João Brito de Sousa
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CANTIGA DE AMIGO DO SÉC. XXI
Amigo,
eu não sei que espantos,
que mágoas, que encantos
moldaram quem sou…
que arestas
de tão fundas rugas
traçaram as fugas
do que me restou
só sei
que tenho a certeza
de ser vela acesa
que o vento da vida,
soprando, soprando,
soprando…
fez tremeluzir
e tento sorrir,
porque quero dormir,
Apagar-me sonhando
Amigo,
a minha cantiga
de Amigo
é antiga,
tem anos sem fim
de dores e deleites,
e se
tão mal te conheço,
não espero nem peço
Que entendas, que aceites
mas canto,
aprendo
e entendo
que, apesar de tudo,
se nela me iludo,
se a teço em veludo
é por querê-la tanto…
Amigo,
eu não sei que espantos,
que mágoas, que encantos,
cantando te dou…
Maria João Brito de Sousa – 29.05.2010
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A INVENÇÃO DOS ÓCIOS
Os ócios,
Se os tivesse,
Pintá-los-ia do amarelo da manteiga
E derretê-los-ia,
Lentamente,
Entre a língua da caneta
E o palato do papel
Depois,
Se os tivesse, repito,
Trabalhá-los-ia à exaustão das horas
Não sei como,
Então,
Lhes chamaria,
Mas sei que o amarelo se decomporia
Numa remota hipótese de verde
Que não o do trevo
E muito menos o da esperança.
Maria João Brito de Sousa - 18.05.2010