É DAQUI QUE TE ESCREVO...
É DAQUI QUE TE ESCREVO
*
É daqui que te escrevo,
desta vontade que me veste de Abril
de poemas e de trapos, também
*
Daqui,
de onde me reconheço em ti espelhada
embora o perfil simples do meu cravo
sem nome nem espinhos
e
tão menos glorioso
pareça vergar-se a cada verso que canta
*
Mas é daqui,
deste lado aguerrido de mim
onde vestida de um Abril em farrapos
não dispo Abril
apesar do despontar
duma resistência que te não sei explicar
mas presumo que
ninguém imaginaria florescendo ainda
*
Daqui,
de onde também eu
aprendi a amar a solidão
e
a recriar o mundo
na sombra da ausência
dos anos – tantos… - do verde caule
de um mesmo sonho de pétalas ao rubro
*
Daqui
e
porque o poema me apeteceu
insurrecto e vermelho
este escrever-te
sem rima nem medo
com as armas florindo num canto maior
*
Maria João Brito de Sousa – 19.06.2011 – 16.31h
*
A um camarada que ainda estava entre nós
no ano de 2011
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PARADOXO
No geométrico azul do teu olhar
bebi,
no aço frio da tua ausência,
uma absurda certeza de te amar
em tragos da mais pura transparência
e tu,
que em mim cumpriste a divindade
no ritual dos corpos partilhados,
fazendo-me florir, frutificar,
és cego, surdo e mudo
à minha essência.
Maria João Brito de Sousa - 1999
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ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU...
ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU
*
Não era a minha face
que via nesse espelho...
era
a de uma outra Alice
no país dos pesadelos
que se transmutava
ao sabor dos cogumelos
e sabia dar corda
ao relógio do coelho...
Não era a minha face, com certeza!
*
Era,
talvez,
a da Menina-do-Capuz-Vermelho
apaixonada por um lobo velho,
com ele fugindo ao caçador malvado
- a avozinha
comprava os bolos no supermercado
e
todos os dias
dançava rock and roll na penumbra do quarto
*
Era
a
da Bela-Adormecida
que nunca mais conseguia adormecer
e se deitava a escrever
cartas de jogo à Bruxa-Arrependida
*
Era
a
da Branca-de-Neve dos sete-mil-anões
devorando maçãs-desencantadas,
tentando acreditar
que nem tudo são desilusões
*
Ou
a
da Princesa-dos-Sapatinhos-de-Cristal
a vir da discoteca às cinco e tal
*
Talvez
a
do
Pinóquio,
sorrindo no ventre da baleia
ou
- quem o sabe? - da Pequena-Sereia,
mas
nunca a minha face:
Não era a minha face verdadeira!
*
Maria João Brito de Sousa - 1992/3
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ARBITRARIEDADE
ARBITRARIEDADE
*
Era uma mulher traçada a fio de prumo,
vinda dos tempos primevos do homem-vertical
*
Dia a dia,
percorria o rumo
que fazia do dia vindouro
um dia insuportavelmente sempre igual
*
Era de noite que brincava aos fantasmas,
diluída nos incontáveis ectoplasmas
das almas que foram e das que estão por vir
por isso,
acordava anoitecida
sem nunca estar segura
de ter acordado do lado de cá da vida.
Ora sonhava sonhos,
acordada,
ora cantava, estando adormecida;
o que doía
era viver multiplicada
onde todos a pediam dividida.
*
Maria João Brito de Sousa - 1993
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ONDE MAIS NOS DÓI
ONDE MAIS NOS DÓI
*
Onde mais nos dói
é na ferida aberta
pelo momento em que a ceia,
travestida de doçura,
se nos derrama em gelo
sobre a pele nua
e os olhos da lucidez se nos estendem
até ao inesperado veneno
de um cálice que ousámos afastar
*
Alguns de nós terão sobrevivido
e permanecido ainda que domesticados,
comprados, vendidos, usados, castrados,
programados, manipulados…
mas gratos,
na montra (in)comum da exposição banal,
conveniente e pateticamente gratos!
*
Porque nem tudo o que luz é ouro
e nem tudo o que se trinca é digerível,
muitos terão morrido, tantos terão lutado
e,
um dia,
todos teremos conquistado
o direito a recusar a exibição
de um estatuto gravado a fogo
sobre a carne viva da sobrevivência.
*
Maria João Brito de Sousa – 01.11.2013 – 18.40h
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CEDO OU TARDE...
Tarde ou cedo
a noite irá render-se
e o poema erguer-se-á, lúcido,
sobre a raiz das coisas indomadas
*
Não mais a ousadia burguesa
o insultará perguntando-lhe se se tem “entretido”
no crochet das palavrinhas rebuscadas,
no bric-à-brac das rimas-de-fazer-passar-o-tempo,
na minudência das noveletas de pequeno ecrã,
no suborno adocicado dos adornos doirados
ou das essências-de-atrair-amigo-fácil
*
Então,
arreganhando os dentes,
ele que suou, ele que se multiplicou
em genuínos gestos de alegria, espanto e dor,
ele que ousou decantar, letra a letra,
cada molécula da lucidez
que compõe o soluto do sonho,
ele que sondou e minuciosamente desbastou,
todo e cada ramo da árvore do real
e, quantas vezes, exausto, quase exangue,
soube, ainda assim, recusar o fruto aparente e fácil,
ele que, sem sombra de hesitação,
desafiou, a cada verso,
a todo-poderosa banalidade
munido, tão só, duma alma cheia de barrigas vazias,
*
Levantar-se-á e rugirá
reclamando, não mais, nem menos,
do que o seu merecido direito à dignidade
*
Maria João Brito de Sousa – 09.01.2012 – 20.28h
IMAGEM - "O Burguês e a Menina", Julio*
*Pseudónimo, enquanto artista plástico, de Júlio dos Reis Pereira, irmão de José Régio. Enquanto escritor usava o pseudónimo de Saúl Dias.
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PRELÚDIO PARA UM POENTE COMO OUTRO QUALQUER
PRELÚDIO PARA UM POENTE
COMO OUTRO QUALQUER
*
Ah, soletro sonhos!
Somo-me em sílabas, silêncios e sons
*
Solidamente
sou e sigo sendo
síncrona, serena e solitária,
sonolenta sobre sonoros sobressaltos
*
sou, sem susto
sou, sem solução
*
Sinto, sorvo e solicito essa insolvência
*
Maria João Brito de Sousa – 28.11.2012 -16.44h
Brevíssimo exercício poético, em sibilantes,
em homenagem à oralidade da língua portuguesa
e, mais uma vez, contra o abominável Acordo Ortográfico
(para ilustração da tela Essência – MJBS -1999)
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SEM TÍTULO NENHUM
Esculpo-me,
em silêncio,
na memória das horas
por onde caminho incólume
até à indecisão da última esquina
*
Tempero
a espada da lucidez
e devolvo-me ao poema
no fio dos meus indecifrados sonhos
*
Guardo-te,
desassossego,
para o reboar dos sinos,
para o galope dos corcéis,
e para as desilusões do não vivido
*
Virei por ti
no dia em que for tarde demais para escrever!
*
Maria João Brito de Sousa – 25.11.2012 – 21.27h
IMAGEM - Getação Floral - Maria João Brito de Sousa, 1999
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NASCE, POESIA!
NASCE, POESIA!
*
Porque o que és
me não cabe nas mãos fechadas,
escorrem-me,
por entre os dedos,
estas sobras
do que recuso transformar
em gesto de troca,
artigo de compra e venda,
vaidade, embriaguez, culto ou ritual
e que és tu,
Poesia.
*
Divinizam-te
alguns
o corpo que não tens
no altar que insistes em não ser
mas eu sei-te no cerne de todas as coisas
escorrendo inevitavelmente
de todos os poros, por todas as frestas,
limpa, lúcida, viva, (in)explicada…
*
Cantas
ainda
onde a esperança desistiu de viver
ressoas no vácuo, apesar de inaudível,
desdobras-te
em invisibilidades e vislumbres
e
acendes-te, sublime,
no arrepio de cada escuridão
*
Inútil
ou não
Nasce, Poesia!
*
Maria João Brito de Sousa – 11.09.2012 -01.53h
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CONTINUAÇÃO
CONTINUAÇÃO
*
Às tantas faz-se tarde;
um deus sobe
a pulso
a corda
da noite fria
de um sol que já não arde
e
morto desafia
um qualquer sonho avulso.
*
Tricota a velha Musa
um espasmo breve,
como beijo que beije sem beijar,
num roçagar de asas,
muito leve
sobre a gestualidade algo confusa
com que acrescenta a corda
e
ao tricotar
liga ideia e matéria…
e mais não deve.
*
Depois…
depois nem um nem outro
entendem desistências:
um sobe
inventando um punho em cada coto
e
a outra
muito além das aparências
desdenha esse (im)provável Deus-dará
e (re)descobre a Vida onde a não há.
*
Maria João Brito de Sousa – 11.05.2012 – 16.46h