PRECISO DE NAVEGAR...
Ai que eu, agora,
Já nem sei meter travões
Tenho as rimas por paixões
Ouso versos compulsivos
Ai que eu, agora,
Nem sei se escrevo ou converso
Cabe-me a vida num verso
Não vendo pra tal motivos
E se isto fica
Para sempre a dar-me o mote
Não há motor nem há bote
Que me reconduza ao cais
Pois se isto fica
Será no mar deste mar
Que hei-de um dia naufragar,
Quando for tarde demais
Mas pouco importa
Naufragar se naveguei
Porque nele me aventurei
Se mais do que à vida o quis
Ah, pouco importa
Que o que importa é ter-se um rumo
Navegar provando o sumo
Que em nós há desde a raiz
Maria João Brito de Sousa - 29.08.2016 - 12.05h
(Imagem retirada da Web, via Google)
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PARADOXO
No geométrico azul do teu olhar
bebi,
no aço frio da tua ausência,
uma absurda certeza de te amar
em tragos da mais pura transparência
e tu,
que em mim cumpriste a divindade
no ritual dos corpos partilhados,
fazendo-me florir, frutificar,
és cego, surdo e mudo
à minha essência.
Maria João Brito de Sousa - 1999
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PERCURSO
PERCURSO
*
Nasci num mar tão distante
Quanto as águas primitivas;
*
Vim presa ao lastro do tempo
Que ecoa nas catedrais
Das grutas intemporais
Onde cresci no fermento
Das fusões mais permissivas
*
Vivi mil milhões de vidas,
Morri de outras tantas mortes;
De tanto ir deitando as sortes
Às coisas nunca vividas,
Cresceram-me asas por dentro
Que,
Por fora,
Sou segredo,
Sou anjo cristalizado
Na vertigem do futuro
(antes que ele seja passado…)
*
Por
Um lado,
Digo tudo,
Por outro,
Não mostro nada
(tenho a razão condenada
por versos com que me iludo…)
*
Se,
Por vezes,
Azarado,
De outras tantas,
Tenho sorte
Pois,
Do nascimento à morte,
Só me perdi quando achado.
*
Maria João Brito de Sousa – 2005 ou 06
Nota - Poema ligeiramente modificado a 02.07.2014
Imagem retirada do Google - Líquen
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ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU...
ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU
*
Não era a minha face
que via nesse espelho...
era
a de uma outra Alice
no país dos pesadelos
que se transmutava
ao sabor dos cogumelos
e sabia dar corda
ao relógio do coelho...
Não era a minha face, com certeza!
*
Era,
talvez,
a da Menina-do-Capuz-Vermelho
apaixonada por um lobo velho,
com ele fugindo ao caçador malvado
- a avozinha
comprava os bolos no supermercado
e
todos os dias
dançava rock and roll na penumbra do quarto
*
Era
a
da Bela-Adormecida
que nunca mais conseguia adormecer
e se deitava a escrever
cartas de jogo à Bruxa-Arrependida
*
Era
a
da Branca-de-Neve dos sete-mil-anões
devorando maçãs-desencantadas,
tentando acreditar
que nem tudo são desilusões
*
Ou
a
da Princesa-dos-Sapatinhos-de-Cristal
a vir da discoteca às cinco e tal
*
Talvez
a
do
Pinóquio,
sorrindo no ventre da baleia
ou
- quem o sabe? - da Pequena-Sereia,
mas
nunca a minha face:
Não era a minha face verdadeira!
*
Maria João Brito de Sousa - 1992/3
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HERANÇA
Avô,
Porque me deixaste
Tanto tempo antes de partir de verdade?
*
Nenhum de nós tinha na mão a tua sorte
E se algum dia te desejei a morte
Foi para te libertar duma vida estagnada,
Para que procurasses a Sereia Encantada,
O Anjo Azul que te convidou para jantar
E a Ilha Deserta que, enquanto vivo, não pudeste encontrar
*
Dos piratas malaios com quem brincavas
Em menino
Deixaste-me a cor da pele,
O negro dos cabelos
E o vago olhar felino
*
Sempre que embarco na tua Jangada de Luar,
Oiço as ondas que me pedem contas
Das tuas rimas vivas como o mar,
Desses teus versos líquidos, salgados
E
Só sei responder-lhes
Que te vi partir de olhos fechados
Que,
De ti,
Só sobraram
Os meus pobres poemas naufragados
Numa praia de areia calcinada
Onde me encontro com os mortos que voltaram
Pr`a perguntar-me da tua morada
*
Maria João Brito de Sousa - 1992
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ARBITRARIEDADE
ARBITRARIEDADE
*
Era uma mulher traçada a fio de prumo,
vinda dos tempos primevos do homem-vertical
*
Dia a dia,
percorria o rumo
que fazia do dia vindouro
um dia insuportavelmente sempre igual
*
Era de noite que brincava aos fantasmas,
diluída nos incontáveis ectoplasmas
das almas que foram e das que estão por vir
por isso,
acordava anoitecida
sem nunca estar segura
de ter acordado do lado de cá da vida.
Ora sonhava sonhos,
acordada,
ora cantava, estando adormecida;
o que doía
era viver multiplicada
onde todos a pediam dividida.
*
Maria João Brito de Sousa - 1993