PEQUENOS LUXOS
PEQUENOS LUXOS
*
Nenhum medo,
conquanto
todas as formas de o negar
viessem bater-lhe à porta naquele dia
pintado de fresco...
*
Era
o pormenor rústico
da inesperada lata de grão-de-bico
que
(por mero acaso)
encontrara na despensa em desalinho
(e)
ainda
o requintado rancho-fingido
que
efectivamente fingira cozinhar
sobre a única boca do fogão desmantelado
(e)
era
a gata,
bêbeda de sol,
espreguiçada nas lonjuras da marquise,
longe do desconsolado consolo
dos livros cobertos de pó
(e )
as paredes desbotadas
que sempre a haviam vestido
como uma segunda pele
(...)
O galope ritmado,
imparável,
do decassílabo heróico,
esse,
um dia voltará
*
Não sabe quando,
mas sabe
que um dia retornará
grávido de som
pujante, indomável
a galgar as planícies de oiro do poema
*
Não baterá à porta
nem se fará anunciar
porque
jamais um galope selvagem
poderia fazer-se anunciar
(pequenos luxos de poeta. Enfim...)
*
Maria João Brito de Sousa - 22.11.2016 - 18.56h
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FIGURA DE PROA (poema descritivo de um sonho real)
FIGURINHA DE PROA
Pinta-se o céu de negras aguarelas
Rasgam-no
De alto a baixo
Centelhas amarelas
E grita irada
A voz de algum trovão
Na praia choram
As mulheres dos pescadores
E
Sou
No sonho
A figura de proa
Da barca de insuspeitos pecadores
Eu
Que tenho medo
Dos líquidos abismos
E da dureza impenetrável dos rochedos
A condenar-me a morrer de mil medos
Num negro mar que me desconhecia
E
Do fundo do mar
Um deus rugia:
- Por mim não passarás impunemente!
Ergo a voz
Numa voz que lhe pedia:
- Salve-se, ao menos, a tripulação!
Reboa a gargalhada em que o deus respondia:
- Quem és insignificante criatura
Que pedes por vidas que não são a tua?
- Sou quem da barca se fez capitão,
E por amor de quem nela labuta
Tomo-lhe o leme nesta minha mão!
Neptuno troça
Mas abranda a fúria
Vulcano cala as vozes do trovão
E a Barca balança docemente
Como se o universo inteiro
De repente,
Se comovesse com tal devoção
Maria João Brito de Sousa - 1993 (?)
*
Nota - Poema reformulado a 21.12.2015
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NESTE DIA...
NESTE DIA
*
No dia que começa,
venho dizer-te bom-dia
e redescobrir-te o sorriso
na memória das sardinheiras,
quase murchas,
mas ainda vermelhas
nas conchas de barro em que as plantavas,
Mãe
*
Venho,
neste dia de memórias,
lembrar-te, mais uma vez,
que te amo
e,
agora que não sei
se és nem onde és,
confessar que sempre te considerei
demasiado rendida à superfície das coisas,
alheada das raízes do tempo,
presa ao lado de cá
das janelas de onde brotam os sonhos
que transcendem a luta pelo abraço imediato,
Mãe
Mas isso era eu…
eu quando,
pequenina como as sardinheiras,
enlaçando uma raiz sem tempo,
desprezando todas as janelas,
me esquecia
- também eu e até eu! -
de não poder julgar-te
porque, afinal,
eras tu quem as plantava sorrindo,
sem suspeitar,
sequer,
que pudessem render-se e murchar,
Mãe
*
Hoje,
dia da criança,
dia em que não sei se és,
nem onde és,
mas não esqueço que foste,
uma lágrima, só uma, como tu,
que tanto temias a morte
e
te deixaste levar
antes de teres podido aprender
o segredo das flores que aceitam
abraços de um outro espaço
por detrás das janelas,
muito depois da superfície das coisas - tantas! –
que nunca chegaste a descobrir,
Mãe
*
Resta-me,
vermelho como as sardinheiras,
o teu sorriso espelhado na vidraça,
enquanto,
nesta lágrima tão única como tu,
tão enraizada quanto o tempo,
hoje como dantes,
Mãe,
teimo em (d)escrever-te para além da espuma das palavras
*
Maria João Brito de Sousa – 01.06.2011 – 09.29h
Reformulado em 04.05.2014 a partir do original de 2011
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O DOM DA PERMANÊNCIA
O DOM DA PERMANÊNCIA
*
A mulher recebe.
Firme como a rocha,
recebe
exactamente
quem mereça ser recebido
*
Ainda não é velha…
Mas parece
(digo; APARECE)
*
Cabelos mais sal do que pimenta,
olhar que amedronta
exactamente
auem mereça ser amedrontado,
aguenta-se sozinha,
canta,
resiste,
e escreve
movida a coca-cola
(digo;
COLA DIET,
marca branca,
sem açúcar, nem cafeína)
"A ESCOLHA ACERTADA"
(diz a Deco,
digo; o ECO)
*
A mulher
é como os gatos;
paciente e indomável,
*
A mulher
é como as muralhas;
forte e inexpugnável,
*
A mulher
é como as árvores;
firme e produtiva
*
Persiste,
cria raízes,
firma-se-lhe o tronco,
multiplica-se em frutos
POR MAIS QUE
AS HORAS MORRAM DEVAGAR
*
A mulher
não se gasta,
gasta à vontade
(digo; A VONTADE)
*
Acende e mata
o suave português
(digo; PORTUGUÊS SUAVE,
AZUL, SE FAZ FAVOR!)
*
A mulher veste-se
como se se não vestisse
e invade as ausências
com inquietante quietude.
*
A mulher está.
Está a mais.
Está demasiado.
Incomoda.
*
Pontual,
a mulher sai…
Mas permanece
(digo; FICA!)
***
Maria João Brito de Sousa – Janeiro 2000
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POEMA A UMA RESISTÊNCIA PESSOAL
… e, às vezes,
tantas vezes de aço vivo,
esta dureza vítrea em que me embrulho,
este trajar de fraga
de alto a baixo,
este mergulho em mim
negando laços
e este dizer que não quase a rugir
*
Um dia
- um qualquer, eu sei lá quando… -,
o bicho em mim acordará estremunhado,
esquecido da espada e da armadura,
e refar-se-á nos sorrisos e abraços
que hoje não toleraria
*
Porque
só assim uma vida se cumpre,
o sol brilhará quando for tempo disso
e o corpo aprenderá a tolerar tanta invernia
*
Até lá, porém,
a luta continua
e,
de alguma estranha forma,
os órgãos,
um a um,
persistem
nesta estranha/inaudível surdina
à qual
nem um pretenso mago cairia
na absurda tentativa/tentação de adivinhar
o tamanho,
a textura
a dimensão
da densa/dura crosta/cicatriz
que as grandes,
grandes feridas pressupõem
*
Maria João Brito de Sousa – 27.12.2013 – 18.15h
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ONDE MAIS NOS DÓI
ONDE MAIS NOS DÓI
*
Onde mais nos dói
é na ferida aberta
pelo momento em que a ceia,
travestida de doçura,
se nos derrama em gelo
sobre a pele nua
e os olhos da lucidez se nos estendem
até ao inesperado veneno
de um cálice que ousámos afastar
*
Alguns de nós terão sobrevivido
e permanecido ainda que domesticados,
comprados, vendidos, usados, castrados,
programados, manipulados…
mas gratos,
na montra (in)comum da exposição banal,
conveniente e pateticamente gratos!
*
Porque nem tudo o que luz é ouro
e nem tudo o que se trinca é digerível,
muitos terão morrido, tantos terão lutado
e,
um dia,
todos teremos conquistado
o direito a recusar a exibição
de um estatuto gravado a fogo
sobre a carne viva da sobrevivência.
*
Maria João Brito de Sousa – 01.11.2013 – 18.40h
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CEDO OU TARDE...
Tarde ou cedo
a noite irá render-se
e o poema erguer-se-á, lúcido,
sobre a raiz das coisas indomadas
*
Não mais a ousadia burguesa
o insultará perguntando-lhe se se tem “entretido”
no crochet das palavrinhas rebuscadas,
no bric-à-brac das rimas-de-fazer-passar-o-tempo,
na minudência das noveletas de pequeno ecrã,
no suborno adocicado dos adornos doirados
ou das essências-de-atrair-amigo-fácil
*
Então,
arreganhando os dentes,
ele que suou, ele que se multiplicou
em genuínos gestos de alegria, espanto e dor,
ele que ousou decantar, letra a letra,
cada molécula da lucidez
que compõe o soluto do sonho,
ele que sondou e minuciosamente desbastou,
todo e cada ramo da árvore do real
e, quantas vezes, exausto, quase exangue,
soube, ainda assim, recusar o fruto aparente e fácil,
ele que, sem sombra de hesitação,
desafiou, a cada verso,
a todo-poderosa banalidade
munido, tão só, duma alma cheia de barrigas vazias,
*
Levantar-se-á e rugirá
reclamando, não mais, nem menos,
do que o seu merecido direito à dignidade
*
Maria João Brito de Sousa – 09.01.2012 – 20.28h
IMAGEM - "O Burguês e a Menina", Julio*
*Pseudónimo, enquanto artista plástico, de Júlio dos Reis Pereira, irmão de José Régio. Enquanto escritor usava o pseudónimo de Saúl Dias.
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METÁFORA - O Manifesto
METÁFORA
(Manifesto)
*
Eu digo-te
que o sol floresce limpo
sobre o estrume das aparências
e que as palavras são casas nas cidades da voz
*
Digo-te
que as ruas são mãos a (re)pousar,
que as estátuas de pedra são canções
e que as canções são luas, de tão brancas…
*
Dir-te-ei,
vez por outra,
que as plantas são mulheres e homens
cansados da colheita improvável,
que os dias – todos eles –
são movimento,
que as noites são o esconderijo
dos sonhos à espera de acordar
e que os muros são pontes entre agora e depois
*
Falar-te-ei de passos sem distância,
de espaços sem medida,
de memórias sem tempo
e de gente sem medo de morrer,
mas jamais me ouvirás falar de renúncia
enquanto o murmúrio me for permitido
na cidade da voz libertada
*
Também a metáfora se come, se bebe
e não sabe render-se enquanto viva
*
Maria João Brito de Sousa – 03.09.2012 – 18.12h
Imagem retirada do jornal "Avante!" - Guernica, Pablo Picasso